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drenagens da alma
ossos, ensaios
desmaios

terça-feira, 28 de maio de 2013

Nada o peixe, nada eu.

       Sempre gostei de bicho, tanto que quando menino criei vários, mesmo sabendo que não fazia bem prendendo-os, e muitas vezes dando um jeito de deixá-los escapar às escondidas. Quando o animal era um muito difícil de cuidar meu pai logo dava um jeito de se livrar, e depois inventava uma história pro sumiço. Eu sabia que era mentira, mas adorava os contos das fugas, e não precisar conviver com a clausura ou a culpa de uma soltura pra morte e o que era pior: assistir a morte. Teve a história do jabuti que abriu o portão e desceu a rua pela calçada até o bosque do pequizeiro, do gato, quindim, que se curou de repente do abatimento e pulou da rede para ganhar o mundo. Teve o casal de marrecos comedor de plantas, que voaram muro acima quando viram um bando de marrecos selvagens em busca dos estuários da América do Sul. Com os garnizés fiquei tempo suficiente para o nascimento dos primeiros pintinhos, foi uma das experiências mais legais.
       Eu não gostava muito de brinquedos nem tinha muitos amigos, precisava dos animais. Mas eles não me faziam feliz. Os curtos ciclos de vida e a dedicação para mantê-los vivos trouxeram meus primeiros mergulhos no universo da morte, e uma angústia me perseguia em sonhos.
       Os hamsters me deixavam agitado, como se eu morasse entre os tubos coloridos de acrílico, que com o tempo tornavam-se encardidos e fedorentos. A facilidade de reprodução de roedores, coelhos, porquinhos da índia, me ludibriava com um certo fascínio da vida . Com eles também compartilhei momentos de tristeza, quando chegávamos ao limite da existência e da esperança, quando a gaiola se tornava muito pequena pra nós. Certa vez descobri o cadáver de um chinês que passava de duas semanas. Virei o corpo gelado na serragem e perdi o fôlego quando vi as larvas famintas, que me consumiram. Uma fêmea panda, corpulenta e macia, foi a mais doce que encontrei, chegava a dormir tranquila na palma da minha mão, até que um dia engravidou, e me deixou desesperado quando rejeitou os filhotes; contei aos outros que ela não produziu leite, e ficou bem triste, mas não era isso, ela não queria os ratinhos rosa-transparentes e mal formados, como são as crias de qualquer roedor. Morreram todos, e ressurgiram em pesadelos por meses. São tantas histórias trágicas com roedores. Na loja perto de casa vi um mecol, ou rato de laboratório, e seus olhos vermelhos e rabo de ratazana me deslumbraram. Era uma fêmea com dois filhotes recém-nascidos, mandei empacotar, a caixa de papelão foi amarrada em minha bicicleta, quando abri a caixa a rata deu um pulo e correu pelo chão do quartinho sujo onde eu criava porções de ratos. Perdi o controle da situação quando meu pai chegou mandando eu devolver o bicho pra loja, prendendo-o na caixa usando luvas grossas de marceneiro. Eu expliquei que não tinha visto o tamanho do bicho, que pensei ter sido um sírio, bonzinho e fofinho. Por um tempo assumi o ofício de cientista; fiz experiências com insetos do quintal, injetando todo o tipo de substância química a espera de uma mutação genética que nunca aconteceu. Até hoje não tem mais grilo aqui. Depois de meses comprei outro mecol, era Túlio, branco, olhos incendiados, uns 30cm. Estava sozinho na gaiola do petshop, desesperado. Emendei cinco gaiolas e a enchi com brinquedos e comidas. Túlio ficava solto grande parte do tempo, no quartinho ou entre meus braços, mas era muito territorialista e eu já enjoava do cheio de xixi em minha roupa. Nosso espaço se esgotou, as grades da gaiola estavam inteiramente roídas, as minhas unhas estavam roídas até a carne. Esfarelei meus dentes roendo. Parei de comer, parei de dar comida para o Túlio. Matei o Túlio e chorei por semanas. Disse que nunca mais teria um animal novamente.
       Enquanto cresci um pouco convivi mesmo com muitos animais. Jabuti, tartaruga tigre d'água, cágado, codorna, marreco, pássaro, girino, sapo, galinha, cachorro, gato, porco, cavalo, carneiro, minhoca, formiga, borboleta, esperança, louva-deus. Hoje, convivo mais com pessoas, mas ainda estou aprendendo, e elas são bem semelhantes com os animais. Recentemente me despedi de uma uma tartaruga, pensei que passaria a vida com ela, já que vivem tanto tempo. Mas de novo vi que nosso terrário estava ficando pequeno e a ração acabando.  Quebramos o vidro, caminhamos lentamente em direções diferentes. Às vezes ainda piso num caco de vidro e me corto. E a silhueta da tartaruga segue no horizonte, andando pra longe, procurando por água, passando por rios, lagoas. Acho que vai chegar no mar, vai mergulhar fundo, por corais, cardumes bailarinos, baleias azuis! 
     Quando menino chamei meu pai e um amigo dele, artista, para construir um laguinho para criar peixes. Comprei carpas coloridas, a bomba de oxigênio quebrou, as coloquei em um aquário, elas se mataram batendo a cabeça no vidro. Hoje, enquanto andava no shopping, vi uma loja de peixes, as cores até nos enganam, embriagam, mas aqueles bichinhos não são mais peixes, perderam a essência quando saíram do mar, foram coisificados para atender as nossas doentias carências. A melancolia dos ciclídeos do Malawi, impossibilitados de contribuir com a mais fascinante história da evolução da vida, me deixou prostrado entre os vidros e algas. Me lembrei do laguinho, que já pensei em derrubar tantas vezes. E me senti afogar em sua água rasa. Me fiz de desentendido, telefonei pra minha mãe e falei sobre levar peixinhos pra casa. Me transportei ao passado, mas agora tenho dinheiro na carteira, e meu pai não mora mais comigo pra me proibir de prender bicho. Inventei que seria bom deixar a água disponível para os passarinhos beberem e evitar que o mosquito da dengue proliferasse. Comprei um casal de tricogaster, varri a poeira e o lodo ressecado, enchi de água com uma mangueira, meu corpo pesado, a tristeza latejando. Rasguei o saco de plástico para os peixes ganharem o nado, e o ar tornou-se rarefeito, senti esmorecer os sentidos. Nadei com eles, nadei, nadei, alimentei meu nada, senti que estavam morrendo, eu estava morrendo, mais uma vez.  
       Ao cair da tarde sumiu um peixe, misteriosamente. Na melhor das hipóteses uma ave o devorou. Minha angustia aumenta em pensar no tricogaster isolado, lá fora, na água gelada. Ele dolorosamente começou a morrer quando nasceu no criatório artificial, e não faz diferença se o encontro morto amanhã, ele já está morto, e eu morrendo. 

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Não é belo
Não inspira
Não respira
Não exime 
Não preenche
É ausência
Decadência
Inexistência  

No mesmo peito o peso morto, preso. Assombrado na multidão, cego, invisível, irrisório. Passado remoto de controle sem pilha, cinema noir, sombra insustentável que não se dissipa nem incorpora. Incorpóreo. Atado intransitável, devorado com pena e tudo, sem piedade. Depenado, vago, vagueia, vagabundo sem sina, no sinal fechado, atarracado no açoite dos dias deletérios, absorto no deleite de vazios afoitos, na verborragia errante, na covardia de principiante.